O Agente Secreto: da lama ao caos, do caos à lama
- Roberto Bérgamo
- 26 de out.
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de dez.

São poucos os filmes em memória recente que conseguem me deixar sem palavras e sem suspiros ao final, foi exatamente o que o Agente Secreto do diretor recifense Kleber Mendonça Filho fez comigo.
Após uma boa noite de sono, o sentimento se estabiliza e as peças começam a se encaixar, essas foram as palavras que encontrei: se trata de um milagre, um grito entalado no íntimo de quem viveu a realidade desse país que encanta ao mesmo tempo que espanta, e o Recife é o cenário perfeito para essa história.
De forma que talvez faça um pouco mais de sentido, o Agente Secreto não é nada do que parece, aqui não existe nenhum agente secreto boa pinta trabalhando para ou contra o governo, não é um horror psicológico sobre a ditadura militar (fui com essa expectativa, que virou bagaço). É um filme sobre sobrevivência, realidade, humanidade e a natureza inescapável e patética da violência. E sobretudo, um marco atemporal da identidade cultural do Recife.
Sobre o filme
Talvez de forma proporcionalmente ambígua, o Agente Secreto não é um filme estilo ‘’007’’ brasileiro ou qualquer coisa parecida, é também difícil de encontrar outro filme similar para comparar, visto que apesar de ter um tom parecido e similar tensão psicológica, se difere bastante da outra obra mais conhecida de Kleber Mendonça (Bacurau) em tema, complexidade narrativa e maturidade, é um filme que não existe outro igual.
Ambientado no Recife na década de 70, o instinto natural é de esperar algo em torno da repressão e ‘’jogos psicológicos’’ da ditadura militar, algo que encaixa perfeitamente com os trabalhos passados de Kleber Mendonça, mas para minha surpresa, aqui a ditadura serve apenas como plano de fundo, não é protagonista.
Apesar da estranheza inicial, o plano de fundo se mostra perfeito conforme a trama se desenrola, pois o ambiente de controle, paranoia e obediência moldam não apenas os agentes do estado brasileiro, mas também as pessoas, despertando o pior dos brasileiros.

A trama acompanha personagens ‘’refugiados’’ do sistema, que contam com a proteção de um contato em comum. Os refugiados não são um grupo organizado, treinado ou mesmo minimamente preparados para lidar com as ameaças que enfrentam, são apenas pessoas comuns tentando sobreviver mais um dia.
Como dito, é nesse cenário que o Recife antigo e contemporâneo, tão reconectado nas obras de Kleber, brilha. O medo é persistente, mas também há o Frevo recifense, carnaval e comentários da Dona Sebastiana para aliviar a tensão e lembrar que apesar dos pesares, ainda há vida na Veneza Brasileira.

Dessensibilização cultural da violência
O filme abre com Armandinho (personagem do Wagner Moura) chegando em um posto de gasolina de beira de estrada nos arredores do Recife. No posto, o protagonista se questiona sobre um elemento inusitado coberto com papel de jornal no chão do local, um corpo abandonado.

O que se segue é uma cena que estabelece o tom do filme, o frentista tentando explicar que o próprio posto foi responsável pelo assassinato e que é um absurdo ninguém ainda ‘’ter vindo buscar’’ o defunto, aparentemente sem entender a bizarrice da situação, que quase entra em dimensão tragicômica por conta das expressões do Armandinho, traduzindo a perplexidade da audiência.
Para completar a introdução, a Polícia Rodoviária chega no local, mas não para examinar a cena do crime, e sim para tentar extorquir o protagonista, que parecia já estar acostumado com a situação.
A violência cotidiana e mais sutil, aqui não há elementos visuais extremos ou mesmo alguns exageros estilizados como em Bacurau, é violência corriqueira, visceral e real. Os personagens esperam com ansiedade a contagem de mortos no carnaval, algo que eu mesmo já vivi, basta fazer uma breve pesquisa sobre número de mortos no Carnaval da Grande Recife.

De forma genial, o Agente usa um elemento icónico do Recife para simbolizar a violência e perigo iminente, o nosso querido tubarão. O Recife se tornou conhecido pelos ataques de tubarão que se intensificaram na década de 90, sendo consequência da construção do Porto de Suape, responsável pela destruição dos recifes de corais que continham os animais. Ou seja, tem perigo vindo.
Sua presença no filme é mais um dos flertes do diretor conectando os Recifes do presente e passado, representando de forma simbólica a violência que ainda está chegando.

O Recife Explicado
Apesar do apelo universalista em seus temas, se trata de um filme inegavelmente recifense. Minha experiência comprova isso, pois assisti na pré-estreia em Florianópolis e algumas das coisas que me arrancavam risos de familiaridade acabaram passando batido pelo restante do público.
Para facilitar a experiência dos amigos que também estão para ver o filme, vou tentar explicar algumas das ‘’referências do Recife’’ que peguei (ou coisas que acredito terem sido referência).
La Ursa

A La Ursa é uma das manifestações mais tradicionais do carnaval pernambucano, vinda das brincadeiras de rua, onde pessoas fantasiadas de urso saem pedindo dinheiro e cantando versos populares, quase sempre debaixo dum calor da peste, seja na praia ou no carnaval.
Aqui a La Ursa também tem um paralelo com os ‘’caretas’’, símbolo cultural similar mais comuns pelo interior do nordeste, são espíritos de vingança que representam o período em que Judas Iscariotes foi atormentado antes de cometer suicídio por trair Jesus. No filme a La Ursa é menos jovial, representando o medo, o desconhecido, perseguição e perigo iminente.
Perna Cabeluda

A Perna Cabeluda é uma das lendas urbanas mais conhecidas do Recife, surgida nas décadas de 70 e 80. Trata-se de uma perna fantasma que atacava transeuntes à noite. Sim, é tão bizarro quanto parece, e ver isso numa tela de cinema foi um absoluto deleite, principalmente pelo tanto que os recifenses levam essa história à sério.
Caso Sari Corte Real

Uma das cenas mais cruas e desconfortáveis do filme, paralelo com a tragédia que marcou o Brasil em 2020, quando o menino Miguel morreu após cair de um prédio de luxo no Recife. Kleber faz essa referência como um lembrete de que a desigualdade e a indiferença social continuam as mesmas. Pelo impacto nacional, é a referência mais óbvia.
Cena da Coxinha (Canibais de Guaranhuns)

Essa é bem específica, mas beeem específica mesmo, ao ponto de talvez ser só coisa da minha cabeça. Mas a cena em que Armandinho recusa uma coxinha de procedência duvidosa na delegacia onde trabalha me lembrou o caso dos Canibais de Garanhuns, que chocou Pernambuco em 2012.
Novamente, coisa da minha cabeça aqui, mas se for proposital me parece encaixar bem. É um eco mórbido sobre dessensibilização coletiva: outra tragédia absurda que se tornou anedota no noticiário, entretenimento.
Veredito: É Tudo Isso e Mais um Pouco
O Agente Secreto é uma obra que só poderia ter nascido no Recife, mas conversa com o mundo. É cinema de autor, mas também de rua, mistura o real e o simbólico, o humor e a tragédia, o sagrado e o profano, o passado e o presente.
Kleber Mendonça Filho reafirma sua posição como um dos diretores mais importantes do cinema contemporâneo brasileiro (para mim, o mais importante), e o filme se consolida como um retrato brutal e poético da alma recifense: da lama ao caos, e do caos à lama.
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